domingo, 15 de janeiro de 2023

Pescadores mortos no mar: A beleza nas tragédias cantadas por Dorival Caymmi

Lançado em 1959 o disco “Caymmi e seu violão”, de Dorival Caymmi, é o que o nome promete. Somente a voz e o violão do cantor com uma série de canções calmas e alegres, que como em grande parte de sua obra, falam sobre o mar. Mas há neste disco quatro faixas que chamam a atenção pelo fato de tratarem de um tema tão trágico, porém de forma bela e poética. No caso, a morte de pescadores que vão para o mar e não voltam.



1 - A jangada voltou só


Após o disco abrir com a alegre "Pescaria" vem "A jangada voltou só", que conta a história de Chico Ferreira e Bento, dois parceiros de pesca que saem em uma jangada mas, como diz o título, a jangada volta vazia. Caymmi aborda sobre a reação das pessoas ao saber da morte dos dois:


Chico era o boi do rancho nas festas de Natá

Não se ensaiava o rancho sem com Chico se contar

E agora que não tem Chico, que graça é que pode ter?

(...)

Bento cantando modas, muita figura fez

Bento tinha bom peito e para cantar não tinha vez

As moças de Jaguaribe choraram de fazer dó


Em uma melodia bastante melancólica ele canta a tragédia levando a reflexão para a falta que os dois farão entre os conhecidos. Falar sobre a morte muitas vezes é focado na morte em si, narrando o que ocorreu, mas quando se traz o pensamento à falta que fará aquele que se foi para os que ficaram, a emoção se torna mais pessoal. Todo mundo que já perdeu alguém sabe como são os momentos em que essa pessoa faz falta. E é para esse ângulo de visão que a música leva.



2 - É doce morrer no mar


A tragédia volta a ser tema do disco em "É doce morrer no mar", escrita em parceria com Jorge Amado. A faixa parece ser uma continuação de "A jangada voltou só", em questão de melodia. A letra é em primeira pessoa, citando a morte de um ente querido que morreu no mar.



Esta faixa é conhecida de muitos em outras vozes. Vale a pena ouvir a nova roupagem que foi dada na versão cantada por Marisa Monte e Cesária Évora.



Outra, cantada cheia de emoção, é na voz de Clara Nunes, lançada em 1973.



3 - O mar


Seguindo, algumas faixas a frente, "O mar" é a mais interessante do disco por ser tanto a mais bonita como a mais trágica. A música começa exaltando o mar com versos que já refletem também sobre o perigo que ele oferece aos pescadores: "O mar quando quebra na praia é bonito, é bonito o mar / Pescador quando sai nunca sabe se volta nem sabe se fica / Quanta gente perdeu seus maridos, seus filhos, nas ondas do mar".

Logo após esse início, cantando bem devagar em meio a um dedilhado, entra uma batida rápida, animada e até dançante... contando a triste história de Pedro, um pescador que não voltou do mar, e Rosinha, que enlouqueceu ao perder seu amado.

Em uma poesia muito bem trabalhada, Caymmi conta que Pedro saía todas as noites para pescar e voltava pela manhã. Rosinha de Chica, que era a mais bonita das moças do local, era também a que mais gostava do pescador. Certo dia ele sai em seu barco e não volta quando o sol nasce. Então os versos dizem:


Deram com o corpo de Pedro

Jogado na praia

Roído de peixe

Sem barco sem nada

Num canto bem longe

Lá do arraiá


Não fosse o suficiente a narração da morte do coitado de Pedro, roído de peixe num canto da praia, a tragédia permanece na vida daquela que o amava, Rosinha:


Pobre Rosinha de Chica

Que era bonita

Agora parece

Que endoideceu

Vive na beira da praia

Olhando pras ondas

Andando rondando

Dizendo baixinho:

"Morreu, morreu, morreu, oh..."


Parece apenas uma história triste, mas a beleza toda da coisa está em como a música narra isso de uma forma que traz, de fato a tristeza, mas com toda uma leveza envolvida, coisa que só escutando você vai entender.



4 - Noite de temporal 


Para finalizar, a última faixa de "Caymmi e seu violão", que é "Noite de temporal". Aqui o foco é uma mãe que espera seu filho voltar da pesca em uma noite de chuva. Essa tem o clima um tanto tenso, com certo tom de mistério, permitindo que o ouvinte imagine a apreensão e ansiedade de uma mãe esperando o filho em uma situação dessas: "Pescador se vai para a pesca na noite de temporar / A mãe se senta na areia esperando ele vortar" - E termina misteriosa da mesma forma, com um fade out da batida tensa da música com Caymmi cantando: "É noite... é noite... é noite..."



“Caymmi e seu violão” é um disco que merece ser ouvido! Não só pela beleza destas poesias trágicas, mas como um todo, é um ótimo trabalho.


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